"Mas é Shakespeare!!!" - A megera domada
Olá, querido leitor! <3
Seja muito bem-vinde, eu sou a Carol Moreiras, tenho dezesseis anos e aqui neste blog falo sobre cultura, então pode pegar sua xícara, sentar-se confortavelmente e se preparar para tomar um chá cultural comigo! Hoje nós vamos conversar sobre a peça sensacional que está em cartaz no Teatro Folha, uma adaptação de “A Megera Domada”, de William Shakespeare.
Quando mamãe me convidou para vê-la fiquei super contente, pois ainda não tinha lido o livro, então seria divertido conhecer a história através da peça, e realmente foi. Divertido devido a adaptação, mas completamente chocante ver o número absurdo de trechos misóginos que permearam a construção do enredo original do famoso dramaturgo. Mas claro claro, gente, temos que levar em consideração o contexto histórico, afinal, é Shakespeare, não é mesmo? O que tem demais? Essas reflexões são feitas de forma extremamente ácida e satírica pela versão que está sendo apresentada no Teatro Folha, com direção de Fabio Brandi Torres e Isser Korik.
Foto dos nossos ingressos!
Na adaptação, ocorre uma divertida metalinguagem, pois uma companhia de teatro decide adaptar o texto de 500 anos atrás, ou melhor, um dos participantes sugere, os outros se revoltam, mas decidem pregá-lo uma peça: fingir se dedicar fielmente a atuação, até que o homem que deu a ideia se tocasse de que a peça era um absurdo de machista. Logo, vamos transitando entre observar o texto quase sem modificações de Shakespeare e os insights dos atores reparando o teor misógino dos trechos da peça.
As principais modificações foram feitas no vocabulário para tornar a história mais atual. Catharina (Leticia Tomazella), a irmã indomável, demonstra a sua rebeldia através de incontáveis palavrões, que chocam a família pela falta de pudor que uma mulher não deveria ter ou demonstrar. Dentro do mesmo assunto eu achei genialíssima a modificação em relação a nacionalidade dos personagens. Na peça original, os personagens vêm de diferentes locais da Itália, já nessa percebemos através de seus sotaques personagens mineiros, gaúchos, paulistanos, entre outros. Além dos dialetos díspares, cada um possui um jeito de andar singular, gesticulações próprias...E só de pensar que os dezesseis personagens presentes são interpretados por cinco atores me dá até um arrepio porque o preparo deve ter sido extremo, a composição corporal de Tito Soffredini foi impecável!!
Além disso, a personalidade dos personagens fica bem aparente pela maquiagem, sentando perto ou longe do palco é possível observar as expressões faciais dos atores, me lembrou até um pouco as máscaras gregas que eram utilizadas nas primeiras formas de teatro da Grécia Antiga, mesmo que de proporção extremamente menor. O figurino é característico do contexto da peça original e mais: tem caráter monocromático, utilizando-se da psicologia das cores para representar os principais sentimentos de cada personagem. Por exemplo, Petruchio (Leonardo Miggiorin) tem suas roupas compostas por roxo, significando poder e determinação, já Bianca (Lisandra Cortez), a irmã mais desejada tem, lógico, a cor do amor, vermelho. Foi tudo tão bem pensado que todo mundo precisa ver, sério!
Foto do instagram do ator Eduardo Leão que atua na peça como um dos pretendentes de Bianca
Voltando um pouco para a parte da brincadeira de misturar o histórico com o atual e brasileiro, é interessante ressaltar que esses foram pequenos detalhes que criaram uma grande identificação por parte do público com a atmosfera do enredo. Entretanto, infelizmente, a identificação vai para além da comédia. A história é projetada de modo a fazer uma crítica à desigualdade de gênero, em diversos momentos a atuação de dentro da peça é interrompida e discutida com o público. Há a utilização de termos atuais como “mansplaning” e “gaslighting” para debater vários pontos do texto do grande poeta. Então, percebemos que se a arte nada mais é do que um reflexo da sociedade da época em que foi feita, e que se podemos utilizar de conceitos atuais para tratar de um texto de meio século atrás, então a sociedade pouco mudou.
O caminho utilizado para causar essa reflexão foi escolhido estrategicamente e é o humor. Grandes nomes da história já utilizaram dessa ferramenta, como o portugês Gil Vicente, que teve como seu principal impedimento para se tornar tão renomado quanto Shakespeare o idioma. O dramaturgo defendia o Ridendo castigat mores, do latim: rindo castiga-se a moral. Com isso, lembro-me bem de 2019, quando queríamos atuar na escola, coincidentemente, Sonhos de uma Noite de Verão de Shakespeare para fazer também uma crítica à desigualdade de gênero e nosso professor nos disse que a melhor forma para fazer as pessoas pensarem sobre o que queríamos era através de uma comédia. Se fizéssemos um drama, as pessoas chorariam e pensariam “como eles atuam bem”, já se fizéssemos o público rir, ele levaria a mensagem do palco para a casa.
E foi exatamente isso que aconteceu com essa incrível peça. Para além das reflexões em relação à desigualdade de gênero, também há a discussão de temas que se intensificaram ainda mais com a utilização das redes sociais crescendo nos últimos anos. Por exemplo, em relação à cultura do cancelamento: Devemos deixar de ler as peças do poeta? Temos que cancelar Shakespeare? Pois é, polêmico!
Para pensar e se divertir com essa peça, só no Teatro Folha, de terça à quinta, às 21 horas! Aproveitem que tem 50% de desconto para quem já está vacinado contra a Covid-19! Ela estará em cartaz até dia 2 de dezembro.
E você, querido leitor, acha que devemos deixar de ler Shakeaspeare? Acredita que considerar o contexto histórico é uma justificativa para ignorar a misoginia? Deixe seu comentário para que possamos conversar : )
Obrigada por ter lido até aqui! Se assistir e quiser conversar mais sobre a peça pode me mandar mensagem no meu instagram @carol.moreiras
Por,
Carol Moreiras
Muito bom! Legal essa releitura de Shakeaspeare com olhar crítico feita na peça. Não dá pra cancelar. Os valores, o adequado e inadequado, são construções sociais, dependentes da época. O quão intolerantes seríamos se fizéssemos isso? Podemos ler e apenas apreciar a genialidade do cara, entendendo que os tempos eram outros... Podemos refletir com esse tipo de olhar mais crítico, entendendo que os tempos não era tão outros quanto gostaríamos...
ResponderExcluirConcordo de certo modo, papai! Não penso que devemos cancelar e sim ler com um olhar mais crítico, já que querendo ou não, ele era genial. Por outro lado, também acredito que já passou da hora de priorizarmos outros tipos de autores e dar palco para escritoras atuais que podem sim ter o mesmo nível de genialidade, mas são menosprezadas pelo simples fato de serem mulheres, isso se estende não só para a atualidade. Sabia que na Grécia antiga havia uma poetiza que era tão conhecida e tão amada quanto Platão? São coisas que a gente não aprende na escola e eu acredito que deveríamos, dando "engajamento" para Shakespeare e outras (ou outros) tão bons quanto.
ExcluirParabéns. Você sempre nos faz refletir.
ResponderExcluirObrigada, padinho, adoro refletir com você!
ExcluirCarol, você traz excelentes reflexões.... de fato, como plateia vamos nos envolvendo com o enredo e achando absurdas falas misóginas contidas na versão original de Shakespeare. Por outro lado, quando trazem essas falas para os dias atuais isso nos choca ainda mais em perceber que vivemos em um outro contexto histórico, porém, ainda assim algumas falas e concepções ainda estão presentes em nossa sociedade. Como bem foi retratado na peça, os ataques às mulheres em uma história escrita, você simplesmente pode parar de ler, porém, quando se vive uma relação de desigualdade de gênero ou violência isso é muito mais difícil. Por isso, é tão importante produções como essa da Megera Domada, para nos chocar e nos fazer refletir que algumas falas não podem ser naturalizadas, mas sim questionadas. A luta contra a igualdade de gênero e tantas outras lutas são necessárias para que as mudanças ocorram.
ResponderExcluirConcordo, mamãe! Principalmente com a última parte que disse sobre a função da peça ser entendermos que algumas falas não podem ser naturalizadas, devendo ser questionadas. Antes de ver a peça eu não tinha ideia da misoginia presente em Shakespeare, não sei se li com desatenção, mas mesmo depois de ler Sonhos de uma Noite de Verão, Romeu e Julieta, Hamlet e Macbeth, realmente não reparei nisso. Acredito que meu olhar para o autor havia sido treinado apenas para a admiração, pois é só isso que havia ouvido falar sobre ele "o escritor atemporal", "o melhor que já tivemos" e, não é que essas coisas não possam ser verdade, mas quando só ouvimos isso, somos desencentivados a questionar ou até mesmo observar comportamentos errôneos. Esse é o papel da arte e de peças como " A Megera Domada", nos mostrar o outro lado de uma história e de um escritor. Muito pertinente seu comentário!
ExcluirADOREI CAROL! Olha, acredito que devemos ler sim e acredito também que é dessa maneira que construímos nosso pensamento próprio e tomamos a iniciativa de mudar, de sermos melhores!
ResponderExcluirVerdade, Maca linda!!! Acho necessário a gente sempre formar a nossa opinião de forma autêntica, buscando compreender a partir de nós mesmos e não do que todo mundo pensa. No TikTok há uma grande polêmica sobre o livro "Aristóteles e Dante descobrem os segredos do Universo", pois a história é linda, mas tem cenas transfóbicas. Recentemente o segundo livro foi lançado e eu vi um cara dizendo que a transfobia está ainda pior do que no primeiro livro, mas a história também, então ele incentivava as pessoas a lerem sim (pirateando, para não apoiar o autor) de modo a refletir e formar a própria opinião sobre o a obra, reconhecendo seus problemas e qualidades. Isso foi controverso do que a maioria dos outros tiktokers disseram, defendendo a não leitura do segundo livro, então achei bem interessante essa opinião dele e concordei bastante, também acho que ela é bem parecida com a sua!
ExcluirAlgo raro aconteceu. Fiquei sem palavras. Mas isso não vai me impedir de dizer que estou pasma e chocada de tanta admiração. Amei seu texto, amei suas reflexões e ainda estão reverberando em meu cérebro atrapalhado.
ResponderExcluirO que fazer diante de tanta habilidade de uma exímia escriba?
Não há mais nada a fazer se não se render apaixonada pela sua obra.
Nossa, Cirley, agradeço imensamente! Me senti da mesma forma lendo o seu comentário, você escolheu palavras certeiras para me fazer bem. Fico felicíssima que tenha gostado do texto e das reflexões, se for acompanhar o blog com frequência, os posts são toda quarta-feira. Obrigada por se dispôr a comentar ❤️❤️
ExcluirNossa realmente é bem polêmico isso, porém como li uma vez um artigo publicado no jornal Folha de São Paulo e achei sensato é que os escritores antigos também eram influenciados pela sociedade de sua época, não que isso sirva de justificativa para os escritores do presente, que por sua vez ainda possuem a oportunidade de mudarem seus conceitos e preconceitos ou até mesmo responderem perante a justiça pelos seus atos. Portanto, como vc mesmo analisou essas obras antigas servem realmente para refletirmos o quanto ainda não nos distanciamos dos preconceitos antigos e ainda necessitamos evoluir muito como sociedade.
ResponderExcluirÉ mesmo, titia, isso em relação aos escritores antigos serem influenciados pela sociedade da época, pois antigamente o povo era menos crítico e tudo era mais aceito do que agora. Acredito que mesmo assim isso não justifica, pois sempre há a possibilidade de treinar seus ouvidos para a escuta, principalmente para homens da elite artística da época: ele era estudado, tinha contato com várias pessoas, então acho que só manteve suas atitudes e pensamentos por não querer se afastar dos seus privilégios. Agora é importantíssimo isso que você mencionou sobre a reflexão, tanto sobre a sociedade atual quanto sobre os autores do passado, pois se não tivermos esse olhar crítico, acontecerá a naturalização das atitudes passadas, só por serem escritores bons e também a normalização dos problemas da sociedade atual, criando uma literatura sem tantas mudanças em relação a misoginia antiga. Mas fico contente que os tempos estejam mudando e por já termos peças como "A Megera Domada", do Teatro Folha, para incentivar a autenticidade da análise crítica. Adorei sua contribuição ❤️
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